No dia 13 de abril de 2013, o coletivo OPAVIVARÁ! realiza sua primeira exposição na galeria A Gentil Carioca com texto crítico de Moacir dos Anjos.
O coletivo desenvolve ações em locais públicos da cidade propondo inversões dos modos de ocupação do espaço urbano, através da criação de dispositivos relacionais que proporcionam experiências coletivas.
Para A Gentil Carioca, OPAVIVARÁ! apresenta uma coleção inédita de dispositivos relacionais acopláveis aos corpos que incorporam-se como fantasias-coletivas extraídas do cotidiano doméstico e cosmopolita. Estas fantasias-coletivas funcionam como engrenagens de sociabilidade feitas a partir de materiais encontrados no comércio popular do Centro da cidade.
On april 13th April 2013, the collective OPAVIVARÁ! will hold its first exhibition at the gallery A Gentil Carioca.
The collective develops actions in public places proposing the inversion of modes of occupation of urban space by creating devices that provide relational collective experiences.
For A Gentil Carioca, OPAVIVARÁ! presents an unprecedented collection of relational devices that incorporate participants bodies as collective-costumes taken from domestic and cosmopolitan daily life. These collective-costumes work as levers for sociability made from materials found in the popular market of the city center.
At the opening of the show, the group will form a parade that will wander like a carnival “bloco” through the streets SAARA Rio. The group will invite friends and artists to wear and activate the collective-costumes at the opening parade. Throughout the exhibition all of the costumes will be available for public use.
Três coisas que eu acho que sei sobre OPAVIVARÁ!
por Moacir dos Anjos
Há uma genealogia. Dela faz parte, sem dúvida, João do Rio e a vontade de capturar o ritmo, os modos e os tipos das ruas. Um olhar para fora da casa, enfim conquistado. Faz tempo isso, início do século que já é passado. Ainda na literatura, talvez João Antônio, paulista que viveu anos em Copacabana, escrevendo através dos olhos de vagabundos, putas,loucos e todos os que resistem ao regramento da vida ordinária. Também está nela, é evidente, Flávio de Carvalho, que imaginou a “cidade do homem nu”, livre dos preconceitos burgueses e paroquiais. Aquele híbrido de artista-arquiteto-engenheiro-escritor que perdeu o pejo e o nojo de lançar-se à prova dos nove da vida. O mesmo que, na São Paulo acanhada de muitas décadas atrás, quis atravessar sozinho a procissão de Corpus Christi, no sentido contrário ao que vinham os fiéis compactos e contritos, ainda mais de gorro enterrado na cabeça, sendo por isso quase linchado. O homem que quis fundar o cortejo dos desgarrados e reinventar a relação com Deus e os anônimos que formam multidões sem faces. E que tempos depois desfilou de saia no centro da cidade, desvelando o disparate de o brasileiro vestir-se como vivesse na Europa. Há vários outros que pertencem a esse inventário breve, e os que aqui vão citados são os incontornáveis. LygiaPape, por exemplo. Aquela que via “espaços imantados” formarem-se nos movimentos coreografados de gentes nas ruas, criados pelo vendedor ambulante ou pelo mágico; por aqueles que buscavam juntos o parque aos domingos; pelos outros reunidos para fazer ginástica no estacionamento vazio de carros; pelos capoeiristas que jogam seus corpos suados na praça e lutam. Espaços imantados são os pontos vitais da cidade, entre os quais seus habitantes se deslocam o tempo inteiro, puxando um fio que se trança e se enovela, estabelecendo formas novas evariadas de relacionar-se com um lugar. Lygia Pape que quis a todo custo apreender em fotografias esses territórios inventados, tarefa tão crucial quanto inglória: a captura do essencial é sempre falhada, embora seja impossível não buscá-la. Na lista resumida de aparentados se impõe ainda José Celso Martinez Corrêa e sua Uzyna Uzona, bacantes dispostos a beber o mundo e a dançá-lo, fazendo do encontro dos corpos e do gozo partilhado armas certeiras contra o encolhimento moral. Trazendo a rua suja e transparente para dentro da instituição-teatro, quebrando quantas paredes fossem necessárias para que ela de novo se impusesse como espaço da celebração possível de uma vida nômade. E há, é certo, Hélio Oiticica, que um dia propôs um “esquenta pro carnaval” no boteco Buraco Quente, no Morroda Mangueira, como o ambiente propício à emergência de um estado de invençãoradical. E que com seu “deliriumambulatorium” apontou o deambular ocioso como a expressão melhor de um projeto de ambientação e imersão no cotidiano. Um jogar-se na vadiagem que se abre para o que está nas ruas em busca de elementos – prosaicos ou extraordinários, suaves ou ásperos – que emancipem o corpo. O que um dia foi museu, aqui se transforma efetivamente no mundo, e o ‘verdadeiro fazer’ da arte se torna a vivênciade cada um. É nessa herança potente que OPAVIVARÁ! se banha, estendendo-a e ampliando-a para outros lugares e tempos.
Há também um contexto geográfico de origem. A cidade do Rio de Janeiro. A de ontem como a de hoje. A de hoje comendo a de ontem por meio de demolições e remoções, sem incorporá-la de fato ao tecido orgânico do corpo urbano. Expelindo-a por vezes como resto, apagando rastros, desmanchando memórias, desfazendo, com ligeireza, arranjos sociais longamente construídos. Um contexto que também acolhe resistências, de variadas intensidades e origens. Da população moradora de áreas afetadas por demoliçõese ‘requalificações’, deslocada dali para acolá em prol de um processo apressado de urbanização, acuada pelo tudo ou nada indenizatório que suprime o direito à escolha livre. Resistência de profissionais da rua e da academia, da puta e do arquiteto, do camelô e do urbanista, todos inventando novas disciplinas para falar de volta a um Estado atravessado de interesses que não são públicos. Sozinhas ou em grupos, pessoas que de algum modo opõem-se à anulação daquilo que faz das suas vidas um evento singular no mundo. Resistência da arte, em suas inúmeras aparições possíveis. Das práticas simples de criação que, por não se deixarem instrumentalizar pela lógica produtivista, incomodam quem se quer atribuir o poder de mando em tudo. Contexto que é também a territorialidade aberta das muitas ruas e praças da cidade, transformadas em campos de infinda luta. Cartografia dos lugares onde o encontro é ainda possível, onde as pessoas trabalham e dançam indistintamente. Mesmo lugares que são inundados pela chuva, soterrados pela lama ou consumidos por chamas. Esse contexto geográfico não é, todavia, restritivo. O mapa simbólico e afetivo da cidade do Rio de Janeiro se expande e desmancha, abarcando diversos outros espaços. Se nessa cidade está o foco do que aqui se tenta falar, logo ele se espalha, alcançando experiências semelhantes vividas pelos habitantes de outros lugares: de Salvador a São Paulo,de Belém ao Recife, de Fortaleza a Brasília, de Belo Horizonte a Porto Alegre. Cidades que constam do mapa de experiências urbanas desmanteladas por projetos de intervenção privada e pública em espaços de morada e convívio e que, apesar de tudo, resistem. É nessa cartografia ferida e viva que OPAVIVARÁ! atua.
Há uma estratégia para isso. Não se trata do que se convencionou chamar de ativismo. Não se trata tampouco de ‘explicar’ o que acontece. Não se quer tornar didático o que é por demais sabido. Nutre-se horror ao tédio das convenções políticas. Principalmente, não se quer ser condescendente e paternalista com os mais afetados pelas transformações em curso. O que se quer é criar situações que ativem e aumentem a potência de vida. Situações fincadas no cotidiano dos afetos comuns, como fazer e compartilhar comida. Como beber e dançar juntos, ou festejar um dia qualquer reunidos na praça, na praia ou na rua. Fazer o carnaval fora de época, posto que no tempo que é próprio dele a sua força transformadora se atenua. Fantasiar-se para encenar a mudança prometida, descondicionar o corpo e sugerir outras vivências possíveis. Há quem perguntese isso é arte. A resposta vem de Jean-Luc Godard, um artista: Arte é aquiloque é do âmbito do desvio e da exceção; não se confunde com cultura, que é o que afirma normas e regras a serem seguidas. Arte incomoda, desassossega, por vezes se faz incompreensível (e por isso é importante). Alarga, pouco a pouco e sempre, o espaço em que se pode partilhar projetos e perseguir trajetórias comuns. É nesse sentido que a arte de fato faz política. A sua política, não a outra. Uma refeição inesperada na praça, uma festa improvisada em qualquer parte. Um corte na realidade quando nada era aguardado. O roçar de uma realidade em outra, a abertura de entradas para territórios novos. Quem sabe? Um cortejo de fantasiados nas ruas de comércio da Saara. Fantasias feitas das coisas encontradas ali mesmo, nas tantas lojas que ainda não queimaram. Coisas que estão no cotidiano das pessoas que trabalham e vivem ali, e que, ao mesmo tempo, amparam a reinvenção do que se esquece com a rotina diária. Deslizamentos de significados, mudanças sugeridas nos modos de perceber o mundo. Roupas que são dispositivos de afecção. Roupas para olhar e para vestir. Roupas para desfilar na vida. Deambulação que serve para nada, ou para acriação do que não se sabe ainda o nome. É isso o que OPAVIVARÁ! faz. Agora. Depois tem mais.
THREE THINGS I THINK I KNOW ABOUT OPAVIVARÁ!
by Moacir dos Anjos
There is a genealogy. From which it is part, undoubtedly, João do Rio and the desire to capture the rhythm, modes and types of the streets. A glimpse out of the house, finally conquered. This vision has been happening a long time, since the beginning of a century that is already. Even in literature, perhaps João Antônio, a writer from São Paulo who lived years in Copacabana, writing through the eyes of bums, whores, crazies and all those that resist the regimen of ordinary life. Also belonging to the same movement, of course, is Flávio de Carvalho, who envisioned the "city of the naked man", free of bourgeois and parochial prejudices. That hybrid artist-architect-engineer-writer who lost his shame and disgust to throw himself into the litmus test of life. The same person that, in the sheepish São Paulo of many decades ago, wanted to cross the procession of Corpus Christi alone, walking in the opposite direction to the faithful who came compact and contrite, buried in a hat on his head and being so nearly lynched. The man who wanted to start a procession of wanderers and reinvent the relationship with God and with anonymous crowds without faces. Who later walked through the city downtown wearing a skirt, revealing the absurdity of Brazilians dressing as if they lived in Europe. There are several others that belong to this short inventory, those who are cited here are the most compelling. Lygia Pape, for example. She used to see "magnetized spaces" form on the choreographed movements of people in the streets, created by the street vendor or by the magician; for those who went to the park together on Sundays; gathering with others to do gymnastics in empty parking lots, the capoeiristas throwing their sweaty bodies in the streets and fighting. Magnetized spaces are vital spaces of the city, in which its inhabitants move all the time, a wire that is braided and makes a yarn, establishing new and varied forms to relate with a place. Lygia Pape wanted at all costs to capture these invented territories in photographs, a crucial and inglorious task: the capture of the essential is always a failed endeavour, although it is impossible not to try. In this short list of kindred spririts, José Celso Martinez Corrêa and his Uzyna Uzona imposes himself, a Bacchus willing to drink the world and to dance in it, through the meeting of bodies and shared enjoyment he created weapons against moral shrinking. Bringing the dirty and transparent street within the institution-theater, breaking as many walls as were needed to make it possible for it to impose itself again as a space of the celebration of a nomadic life. And there is, of course, Hélio Oiticica, who one day proposed a "Pre-Carnival Warm Up" in a bar in the Buraco Quente in the Morro da Mangueira, seeing it as a suitable environment for the emergence of a state of radical invention. And with his "deliriumambulatorium" he appointed the wandering loiterer as an expression of a project of ambiance and immersion in everyday life. Throwing yourself into loitering to open up to what is on the streets in search of elements - prosaic or extraordinary, smooth or rough - that could emancipate the body. What once was a museum, now effectively turns into the world, and the 'real making' of art becomes the experience of each person. It is in this legacy that OPAVIVARÁ bathes, extending it and amplifying it to other places and times.
There is also a geographical context of origin. The city of Rio de Janeiro. Yesterdays city as well as todays. The one of today eating the one of yesterday through demolitions and removals without incorporating it to the organic tissue of the urban body. Expelling it sometimes as leftovers, erasing traces, unravelling memories, lightly undoing long constructed social arrangements. A context that also hosts resistances of various intensities and backgrounds. The population who lives in areas affected by demolitions and ‘requalifications’, moved from one place to another in favor of a hurried process of urbanization, cornered by an all or nothing indemnity which withdraws their right to freedom of choice. Resistance by professionals from the street and the academy, prostitutes and architects, urbanists and street sellers, all creating new disciplines to speak back to a state filled with interests that are not those of the public. Alone or in groups, people who somehow oppose the annulment of what makes their lives a singular event in the world. Art resistance in its many possible appearances. From the simple practices of creation that, do not let themselves be instrumentalized by the logic of productivity, bother those who want to assign the power of total command. A context that is also the open territoriality of many streets and squares of the city, turned into fields of endless struggle. A cartography of the places where meeting is still possible, where people work and dance alike. Even places that are flooded by rain, buried by mud or consumed by flames. This geographical context is not, however, restrictive. The affective and symbolic map of the city of Rio de Janeiro expands and dismantles itself, covering many other spaces. If this city is the focus here, it also quickly spreads, reaching similar experiences lived by inhabitants from elsewhere: from Salvador to São Paulo, Belém to Recife, Fortaleza to Brasilia, Belo Horizonte to Porto Alegre. Cities listed in the map of experiences that are dismantled by private and public urban intervention projects in places of living and conviviality that, after all, resist. It is in this cartography, wounded and alive that OPAVIVARÁ! acts.
There is a strategy for this. Its is not so-called activism. It doesn't either want to 'explain' what is happening. It doesn't want to become didactic. It is nourished by the boredom of political conventions. In particular, it does not want to be condescending and patronizing to those most affected by ongoing changes. What is wanted is to create situations that activate and increase the power of life. Situations embedded in ordinary daily lives, like cooking and sharing food. How to drink and dance together, or celebrate any day gathered in the square, at the beach or on the street. Celebrating the carnival out of season, since in its own time its transformational power is attenuated. Dressing up to enact the promised change, unconditioning the body suggests the possibilty of other experiences. There are those who ask whether this is art. The answer comes from Jean-Luc Godard, an artist:Art is that which is both the scope of the deviation and the exception, not to be confused with culture, which states the standards and rules to be followed. Art bothers, disturbs, sometimes becomes incomprehensible (and this is important). It extends little by little and always, the space in which you can share projects and pursue common trajectories. It is in this sense that art does its politics. Its own politics, not the other. An impromptu meal in a square, a party improvised anywhere. A cut in reality when nothing was expected. The rustle into another reality, the opening of entries for the new territories. Who knows? A procession of costumes in the shopping streets of the SAARA. Costumes made from things found right there in many stores that have not yet burned. Things that are in the daily lives of people who live and work there, and at the same time, shelter the reinvention for what is forgotten from the daily routine. Landslides of meanings, suggested changes in the ways of perceiving the world. Clothes that are devices of affection. Clothes to look at and to wear. Clothes for parading in life. Good for nothing deambulation, or the creation of what is not yet known by name. That's what OPAVIVARÁ! does. Now. Later there's more.