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CARRO CAMA CARNAVAL 2015

Rio de Janeiro (Carnaval de Rua) (2015)

   

 

Fotos: Mídia Ninja

MOMENTO PÚBLICO por Ophélia Patrício Arrabal

É momento de suspensão dos limites e definições sociais. Num mundo absolutamente estratificado, especializado, padronizado, mapeado, cercado, murado, patrimonializado, privatizado, compartimentado em infinitos territórios e guetos que buscam se legitimar sob um ideal multiculturalista neoliberal, o momento público surge como um ritual coletivo que se abre permeável a todos de modo generalizado, exaltando os indivíduos insubmissos, despidos de seus assujeitamentos e couraças sociais, culturais, identitárias, étnicas, corporais, sexuais. Os sentidos do momento público são ativados pelo contraste da suspensão súbita de desigualdades sociais e pela aceleração confluente das multiplicidades individuais que explicitam uma diversidade em movimento.

Nas grandes cidades, onde se interpenetram as multiplicidades culturais, confrontam-se as desigualdades sociais e se concentra a maior parte da população do planeta, é essencial a construção e criação coletiva de momentos que instaurem como campo de ação os espaços públicos da cidade, espaços estes ocupados por coletivos heterogêneos, organismos de múltiplas corporeidades que o habitam de modos particulares. 

Estes corpos passeiam por um lugar que é legislado como público, mas que foi essencialmente loteado, arrendado, fatiado e distribuído a grandes conglomerados econômicos que privam o cidadão comum de usar esse espaço como lhe parecer mais conveniente. Temos assistido a isso com clareza nos últimos anos na cidade do Rio de Janeiro. O cerceamento do uso do espaço público não é um fenômeno contemporâneo, remonta outros tempos e outras formas de controle. Na União Soviética Stalinista todo mobiliário urbano como cadeiras e bancos foi retirado das praças que se transformaram em locais de passagem. Para Stalin a congregação de uma coletividade num banco de praça era considerada um perigo para a manutenção das ideias impositivas de um Estado total. A pulverização das coletividades sempre se deu como forma de manutenção de um poder autoritário e, durante a ditadura militar no Brasil, se estendeu do espaço público ao privado onde qualquer reunião com mais de quatro pessoas já era considerado um ato subversivo.

O sujeito é sempre de alguma coisa ou de alguém, se define em relação à instituição que o permite. Historicamente as políticas gregárias visaram à transmutação do indivíduo em sujeito: os monarquistas em nome do rei, figura de direito divino, representante do príncipe unitário celeste sobre a terra; os comunistas, em virtude do corpo social pacificado, harmonioso, sem contradições, enfim resolvido à maneira monoteísta; os fascistas, em respeito à nação homogênea, à pátria militarizada e sã; os capitalistas, obcecados pela lei do mercado, a regulagem mecânica de seu fluxo de dinheiro e de benefícios gerados. Sempre promovendo o sacrifício do diverso em nome dos universais particulares dos quais eles comungam: Deus, o Rei, o Socialismo, o Comunismo, o Estado, a Nação, a Pátria, o Dinheiro, a Sociedade, a Raça. No Brasil, são inúmeras as expressões que denotam o desprezo pelo indivíduo, usado como sinônimo de gente sem princípios, um elemento desgarrado do mundo humano. Daí a expressão indivíduo poder ser utilizada na linguagem da crônica policial como um terrível sinônimo para o pleno anonimato. Isso explica também porque, no Brasil, o termo individualismo tornou-se um sinônimo e expressão cotidiana de egoísmo, um sentimento ou atitude social conscientemente condenada entre nós e, no entanto exercida diariamente por todos como modo operante de uma sociedade extremamente competitiva. A diferença fundamental que precisamos compreender aqui é que, enquanto o egoísmo se coloca como a política do sujeito que valoriza apenas a si próprio, o individualismo é a política que valoriza os indivíduos e sua diversidade.

E os indivíduos são também coletivos porque somos muitos para ser um. A intercontaminação dos corpos em movimento, a multiplicidade de veredas, caminhos, teias, tramas, transas, tranças, trilhas, atalhos pelos interstícios das urbes que acolhem diversidades subjetivas que tendem ao infinito, compõem um complexo ecossistema operacional orgânico de particularidades que dentro da lógica hiper capitalista do antropocênio acelerado, promovem acidentes topográficos tectônicos como avalanches e erupções sociais, onde os abismos de segregação se erguem como ruínas em construção infestadas de rolos compressores em marcha progressiva esmagando as individualidades, nivelando as subjetividades e padronizando as particularidades. Aqui embaixo o negócio é o seguinte quem tem grana vai de carro, quem não tem vai de busão. No ideal capitalista pós-colonial a ascensão social é diretamente relacionada a não necessidade de utilização de espaços, leis, aparelhos e serviços públicos. Esta lógica é construída por um longo histórico de políticas estatais e civis de desvalorização, desumanização, desocupação, desmonte e sucateamento de todas as esferas públicas de atendimento à sociedade. No Brasil, quem tem grana mora, se transporta e trabalha em propriedades com regulamentos e morais próprias, blindadas em vidros espelhados e ares condicionados. Quanto pior a posição social do sujeito maior é a necessidade deste se submeter aos espaços, leis, aparelhos e serviços públicos. Ter que sair de casa a pé para pegar um ônibus ou um trem para ir ao trabalho ou trabalhar na rua como vendedor ambulante, são condições associadas à falta de capital, sempre contrapostas aos benefícios econômicos pessoais como a casa própria, o carro próprio, o negócio próprio, a família, o cachorro, atributos valiosos aos ideais e modelos de cidadão veiculados e propagandeados massivamente pelos canais da mídia oficial. A grande imagem representativa deste abismo entre a propriedade privada e o espaço público são as grades em terrenos, portas e janelas de casas e edifícios por todos os bairros das cidades brasileiras, expondo o medo, terror e violência que estruturam permanentemente esta fronteira.

Quando diferentes vivências e modos de ser e estar se encontram, se reconhecem, se interpenetram e se dissipam atingimos a potência máxima da coletividade. Assim se dá com os carnavais de rua, em diversas cidades brasileiras, que acontecem todos os anos promovendo de modo pulverizado e provisório contundentes experiências de momentos públicos. É neste instante que o bando, enquanto coletivo de indivíduos, se destaca da massa, como o gregarismo dos sujeitos. O momento em que a coletividade se apresenta em sua maior potência e radicalidade é paradoxalmente o momento em que o indivíduo aflora para fora de sua particularidade, personalidade e até mesmo de sua subjetividade. Desdobramento erótico de toda materialidade interna do ser em superfície pele, como cardumes de peixes abissais vindos à tona, descomprimindo cada dobra de suas entranhas, expondo ao ar e ao éter as cavernas mais profundas de seus esqueletos. Contatos imediatos universo interface touchscreen. 

No contexto de suspensão dos classificados sociais, desigualdades históricas e hierarquias impostas é suprimido também o mercado e todas as lógicas econômicas, pois este é o momento da abundância e do bando. As trocas que acontecem entre os indivíduos que compartilham esta experiência se dão entre valores estipulados individualmente e necessariamente provisórios, de acordo com os desejos, afetos, escolhas e a vontade de troca dos indivíduos envolvidos. Não há mercadoria, mas objeto de troca. Neste contexto, de intensa atividade relacional e participação afetiva, brotam os rizomas do que podemos propor aqui como arte pública, se ramificando pelo fértil solo da estética generalizada que ultrapassa as oposições entre arte e vida, rua e museu. Não para fazer, como ocorre frequentemente, da vida e da rua referências e critérios novos, mas para convocar a arte a uma dinâmica ascendente e expansiva, que se quer em movimento, deseja sua amplitude e almeja seu desdobramento. Aí a arte como mercadoria é simplesmente impossível. Ao contrário, a arte é uma condição de vida. A mediação é difícil de ser superada, mas a remoção de todas as barreiras entre artistas e usuários da arte tenderá a uma condição na qual o artista não é um tipo especial de indivíduo, mas todo o indivíduo é um tipo especial de artista.

E não é exclusivamente nos espaços públicos onde vibram os momentos públicos, exatamente porque este não possui qualquer exclusividade nem definições sobre onde, quando e como deve acontecer. Perceber como os espaços são construídos através dos atravessamentos de subjetividades e como podemos intervir neles, distensionando fronteiras e esgarçando membranas, é o que torna possível vislumbrarmos um estar coletivo mais prazeroso para todos. Aqui, podemos propor o imperativo categórico do hedonismo que considera o gozar e o fazer gozar – esta segunda parte, inseparável, constitui a genealogia da política hedonista –, ela vale como modalidade de uma ética alternativa à do ideal ascético. Compartilhar o mundo é uma tarefa difícil que a humanidade vem realizando há alguns milênios. Em alguns momentos de forma potente se desdobrando em mais vida, em outros de forma destrutiva alimentando a morte. Num planeta com mais de 7 bilhões de habitantes é fundamental entendermos como é possível organizar-se coletivamente para viver em sociedade. As coletividades, matéria-prima do momento público, são formadas por conjuntos de indivíduos com uma bagagem cultural, estética, política, erótica e poética autônoma. A força das manifestações coletivas está justamente na junção da potência dos conhecimentos e experiências diversos desses indivíduos que, juntos, podem construir espaços de troca e modos de circulação de informações em rede que estão constantemente se desdobrando, multiplicando dinâmicas de ação que promovem empoderamentos compartilhados. Telepatiafetiva! 

Eu aspiro à emergência e à prática de uma arte pública, individualista-coletiva, provisória e ambulante, que promova uma ressignificação dos espaços, independente de suas condições privadas ou particulares, como espaços públicos, do público para o público generalizadamente estetizado. Funciona como uma força descompartimentadora de territórios. Desse modo, as experiências mais contundentes, com potencial de transformações, inversões e deslocamentos de pontos de vista, são aquelas que promovem o contato direto, multissensorial, multissimultâneo, afetivo, corporal, interativo, relacional e participatório com o outro. Aqui é fundamental distinguirmos monumento público de arte pública, pois enquanto o primeiro se dirige às massas, com um discurso concluído e imposto, que só emite, não absorve nem reflete, geralmente baseado em consensos de beleza e impacto visual na paisagem; a segunda se dirige aos indivíduos no intuito de estar junto com os múltiplos outros que a convivenciam, compondo uma rede de participações aberta. O sentido da obra de arte que cria uma via de mão única entre autor e espectador é implodido e os papéis de emissor e receptor são simplesmente suprimidos. A arte pública deve estar aberta a qualquer modo de interação, é permeável e por isso se constrói no processo de contato e contágio público, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente, não começa nem conclui, se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser.

Os rituais que instauram o momento público, se utilizando da arte pública como estopim e meio, libertam temporariamente os indivíduos das amarras dos assujeitamentos particulares seculares, conjugando-os em uma coletividade que elimina as desigualdades, absorve as diferenças e exalta a diversidade, funcionando como um indefinível ecossistema em expansão explosiva!

 


Ophelia Patricio Arrabal